A polícia certamente não aborda os moradores de bairros de classe média e alta – majoritariamente brancos – como abordam sujeitos negros da/na periferia, não os chamam de “Zé”, não os fazem deitar no chão, não os dizem para chamá-los de “senhor”, tampouco são agressivos ao perguntarem se esses sujeitos têm ficha policial ou estão em posse de ilícitos. Não agridem os jovens brancos de classe média e alta que vão até as favelas comprar substâncias entorpecentes, mas – muitas vezes – punem, severa e agressivamente o jovem negro da periferia que vende tais ilícitos.
Ricos e pobres, brancos e negros são humanos, mas se colocados em uma métrica social que nos permita enxergar a realidade para além do racismo científico e à luz de pensamentos não-racistas, qual seria o ordenamento responsável por tal distinção? Respondo-lhes: o Racismo! É o racismo, inclusive, que faz com que o segurança do mercado me siga enquanto ando pelos corredores do local, é o racismo que me faz ter que andar em posse dos meus documentos desde a adolescência, é o racismo que me faz estar em “atitude suspeita” ao andar pela rua, sentar no banco de uma praça ou na calçada de minha casa a noite. Não quero, no entanto, dizer que os agentes de segurança pública, o guarda do mercado, meus vizinhos, os motoristas dos carros que travam a porta quando atravesso a rua e os taxistas que me levam pra casa e ficam me observando pelo retrovisor são racistas porque escolheram ser, mas são racistas porque o racismo moderno ocorre de forma quase “natural” sob a égide estrutural e velado em sua sutileza como sabiamente nos ensina Abdias do Nascimento em sua obra O gênocídio do negro brasileiro, por isso discorro com a certeza de que todo racismo pelo qual eu, meus familiares, conhecidos e conhecidas passamos não se reduzem à minha cidade.
Recorro-me a uma fala que proferi em uma palestra ministrada para uma OSC da minha cidade quando indagado sobre o motivo pelo qual a aplicabilidade das medidas socioeducativas não surtiram grandes efeitos na Organização que atuava na época como Orientador Socioeducativo: “para a inclusão e a socioeducação acontecer de fato é necessário que todos os agentes saibam a importância da não discriminação, da empatia e da não violência”. Sobre o assunto, lembro-me que a maioria dos adolescentes que acompanhei eram negros, pobres e moradores dos bairros mais vulneráveis da minha cidade.
O fato é que negros são minoria nos espaços de poder, mas representam a maioria da população carcerária, a maioria da população mais pobre cuja marginalização e opressão são latentes em todo processo da evolução brasileira, cuja escravidão deixou o expressivo legado do racismo – reprimido, negado, velado – sem nenhuma política ou iniciativa de correção ou que proporcionam melhores condições sociais dos negros alforriados e seus descendentes nas décadas seguintes à abolição da escravidão e somente a partir da década de 1990 é que algumas iniciativas foram tomadas neste sentido e dando início ao que conhecemos atualmente por por Ações Afirmativas. Portanto, é necessário que entendamos: “Em um país desigual como o Brasil, a meritocracia avaliza a desigualdade, a miséria e a violência, pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas contra a discriminação racial, especialmente por parte do poder estatal” (Almeida, 2008, p. 63)
Lembro de minha mãe diz que eu deveria estudar e ser alguém, ela sabia – e sabe – das dificuldades que eu enfrentaria, todavia, ela, certamente, não tinha a clareza de uma questão vital e que os negros devem perceber para que se consigam escrever sua própria história: o negro, ainda que alcance as maiores titulações acadêmicas ou posições sociais, continuará sendo negro e viverá sua negritude, embora no imaginário branco pode ser esses negros que acenderam socialmente sirvam como exemplo de meritocracia para tornar cada vez mais robusta a afirmação de que o racismo não existe, basta empenho e dedicação para superar as adversidades.
Vejam, uma criança negra oriunda das mais baixas classes sociais não se percebe negra no mesmo momento em que se percebe economicamente pobre, pois a pobreza – social e econômica – é sentida a partir do momento que se o sujeito se entende como ser, já o racismo se constrói, se fortalece estruturadamente e se apresenta ao sujeito quando esse tem os primeiros contatos com instituições sociais além da família (que pode esta reproduzir ou não o preconceito racial).
A Escola, por exemplo é, notadamente, um ambiente onde a diversidade deve[ria] ser ressaltado buscando ampliar a compreensão dos agentes ativos no processo de construção da aprendizagem (educadores e educandos) e, consequentemente, a sociedade. Todavia, é o local onde as diferenças postas nem sempre são questionadas e talvez isso ocorra pela precarização na formação dos educadores, mas também pelo fato da “ (…) história narrada nas escolas (…) [ainda ser] branca” como enfatiza Hélio Santos em A busca de um caminho para o Brasil (2003, p. 27, grifo nosso).
Mas, para além do que já destaquei ao longo da presente reflexão, gostaria de ressaltar as considerações de Jurandir Freire Costa em Da cor ao corpo: a violência do racismo – prefácio do livro Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social, de Neusa Santos Souza (1990) – “Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarar o corpo e os ideais de ego do sujeito branco e a de recusar, negar, anular a presença do corpo negro” (Costa, 1990, p. 2).
Que a consciência negra não seja apenas um dia comemorativo no calendário anual, mas uma questão cotidiana e intransigente daqueles que se declaram negros e reconhecem as limitações e as mazelas deste reconhecimento, sobretudo no Brazil (racista e intolerante) que mata, cotidianamente, o Brasil (plural e culturalmente diverso), como cantado em Querelas do Brasil por Elis Regina em 1978 (composta por Aldir Blanc e Maurício Tapajós). Que os brancos reconheçam seus privilégios, contribuam na luta antirracista, mas não chancelem para si a titulação de exímios conhecedores das problemáticas negras, pois esses jamais sentirão o que é ser negro em uma país racista.
Que tenhamos a coragem dos nossos ancestrais e possamos sempre reverenciá-los: Zumbi dos Palmares, Dandara, Iyá Detá, Iyá Kalá, Iyá Nassô, Guerreiro Ramos, Manuel Calafate, Aqualtune, André Rebouças, Abdias do Nascimento, Solano Trindade, Milton Santos, Luiz Gama, Beatriz Nascimento, Neusa Santos Souza, Eduardo de Oliveira e Oliveira, Hamilton Cardoso, Mãe Menininha do Gantois, Mãe Aninha de Afonjá, Lélia Gonzalez, Mão Beata de Iemanjá, Thereza Santos, entre outros/as, pois como nos ensina Beatriz Nascimento no documentário Ôrí – dirigido pela cineasta e socióloga Raquel Gerber – (1989, 41:55-42:37, grifo nosso): “A linguagem do transe é a linguagem da memória. Tudo isso não resgata a dor de um corpo histórico. Aquela matéria se distende, mas ao mesmo tempo ela traz com muito mais intensidade a história, a memória, o desejo. O desejo de não ter vivido a experiência do cativeiro. A escravidão é uma coisa que está presente no corpo [negro], no nosso sangue, nas nossas veias”.
Por fim, que o ideal negro não seja o branco!
Livro
Em “Candomblé no Brasil: Resistência Negra na Diáspora Africana” encontraremos informações importantes ao campo dos saberes emancipatórios desta religião de matriz africana, como a problemática do racismo religioso e contribuem para as discussões do tema ao âmbito religioso, civil e acadêmico. O Candomblé, enquanto forma de resistência afro-diaspórica, é analisado por meio de “referenciais teóricos majoritariamente africanos, negros, afro-diaspóricos ou afrocentrados”. Esta publicação é destinada a pesquisadores e interessados pelo tema.
Ronan da Silva Parreira Gaia
Bàbá Ìgbín Aládé
Negro, candomblecista, ativista, pedagogo e pesquisador
Membro do “Tierno Bokar: Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre o fenômeno religioso” (UNILAB-CNPq)
E-mail: ronangaia@yahoo.com.br
Um comentário
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Sou a Marina Almeida, gostei muito do seu artigo tem
muito conteúdo de valor parabéns nota 10 gostei muito.